Como o sândalo humilde que perfuma
O ferro do machado que lhe corta,
Hei de ter a minh’alma sempre morta
Mas não me vingarei de coisa alguma.
Que pajeuzeiro – pajeuzense de nascença ou apaixonado pelo Pajeú – não ouviu e declamou esses versos?
Isso mesmo: são os versos da primeira quadra do soneto Se voltares…, que Rogaciano Leite escreveu no dia 22 de agosto de 1950, pouco antes de publicar seu único e primoroso livro Carne e Alma.
Pois bem: neste ano de 2020 comemora-se o centenário de seu nascimento, ocorrido em 1º de julho de 1920 no Sítio Cacimba Nova, no povoado Umburanas, então Segundo Distrito do Município de São José do Egito e hoje pertencente ao Município de Itapetim, no Sertão do Alto Pajeú de Pernambuco.
Foi lá, no Sítio Cacimba Nova, que Rogaciano fez o curso primário na Escola Rudimentar – era essa mesma a denominação! – e decerto onde tomou conhecimento de um poeta que faria brilhar os olhos do molecote já dado à cantoria: Antônio Frederico de Castro Alves, o Poeta dos Escravos, que com seus versos libertários havia contribuído para o fim da escravatura oficial no Brasil:
Jornal do Commercio (AM), 15/02/1948
Castro Alves
14 de março de 1847 – 6 de julho de 1871
Depois, já com 27 anos de idade, andarilhando por Caruaru e Recife ganhando fama de cantador, essa admiração converteu-se em um dos mais belos poemas da língua portuguesa: Acorda, Castro Alves!, que Rogaciano escreveu precisamente por ocasião do centenário de nascimento do autor de Espumas flutuantes, nascido a 14 de março de 1847 – por isso mesmo calendarizado como Dia Nacional da Poesia.
Nele, contra a escravidão em que consiste a vida do trabalhador contemporâneo – o vaqueiro, o seringueiro, o cortador de cana sobre quem depois falaria em longas reportagens – e clamando pela volta do poeta condoreiro Rogaciano brada:
Condor, que é de tuas asas
Que os astros arremessaram?
As plumas da águia soberba
Que no infinito brilharam?
Que é do teu grito altaneiro
Que atravessava o nevoeiro
Para vibrar junto a Deus?
Renasce, Fénix altiva!
Que outra senzala aflitiva
Precisa dos cantos teus!
…
Renasce! A tua lira é doce orquestra…
Revive! Quem na lousa te sequestra…
Junto ao pó dos mortais?…
O mundo é um drama… volta! Olha o proscênio!
É tempo de voltar! Acorda, gênio!
Já dormiste demais!…
Inicialmente publicado nos jornais de Fortaleza – onde Rogaciano viva e viveria desde 1943 –, este poema foi imediatamente reproduzido na imprensa de todo o Brasil e recebeu uma apreciação crítica doutro baiano arretado: Jorge Amado, autor, dentre outros clássicos, de Dona Flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tieta do Agreste, Capitães da Areia e ABC de Castro Alves.
Mas não foi só isso: em 1947, em meio às reportagens e recitais que fazia nas regiões Norte e Nordeste do país – por esta época escrevia para a Gazeta de Notícias, de Fortaleza, e apresentou-se no Teatro Carlos Gomes (Natal/RN), no Teatro José de Alencar (Fortaleza/CE), no Teatro Arthur Azevedo (São Luís/MA), no Teatro da Paz (Belém/PA), no Teatro Amazonas (Manaus/AM) e no Teatro Santa Isabel (Recife/PE) –, para “apurar-se” ainda mais na arte da poesia, Rogaciano Leite decidiu cursar Letras Clássicas na primeira turma da Faculdade Católica de Filosofia do Ceará.
Jornal do Commercio (AM)
15/02/1948
Mas aí você pergunta: Como, se a vida escolar de Rogaciano até então restringia-se ao curso primário que fizera em infância?
Ora, a poesia salva vidas, amigo: para solicitar sua inscrição no vestibular, Rogaciano apresentou seu poema Acorda, Castro Alves! – impresso como folheto de cordel – e a comissão responsável o aceitou por considerar que o alcance e a profundidade de conhecimento que o autor demonstra equivalia a todo o Ensino Secundário (nível que corresponde ao atual Ensino Médio), tornando-o, deste modo, habilitado a realizar o exame de ingresso na universidade.
É o que o próprio Rogaciano dirá em entrevista no ano seguinte:
Pequeno Jornal (PE)
29/07/1948
Tem mais: para a prova do vestibular, Rogaciano fez uma redação “em versos alexandrinos”:
A Manhã (RJ)
19/07/1949
É pouco? Pois tem mais ainda: devido às suas incessantes andanças pelo país, o aluno Rogaciano Leite era dispensado de marcar presença em sala de aula, só comparecendo à instituição de ensino apenas “para fazer exames”:
A Manhã (RJ)
19/07/1949
Agora, sim: por fim, no final de 1949 Rogaciano Leite receberia o diploma de Bacharel em Letras Clássicas, tornando-se, assim, “o primeiro Cantador a alcançar um grau tão elevado” (Francisco Linhares e Otacílio Batista, Antologia ilustrada dos cantadores, p. 275):
Poistaí, poeta: uma história do autor do eterno Se voltares…, que você sabe como termina, não é?
Para os que voltam, pelo amor vencidos,
A vingança maior dos ofendidos
É saber abraçar os humilhados.
Lindoaldo Campos
Deixe seu comentário: